O reality show de verdade e o reality show de mentira


O Big Brother Brasil 15 (foto: reprodução)


O formato de programa televisivo conhecido como “reality show” já surgiu avacalhado no Brasil. Enquanto nos Estados Unidos a célula mater é o Survivor e suas provas de resistência física e pressão psicológica, aqui a gente lembra do Casa dos Artistas de 2001 com Silvio Santos mudando as regras no meio do caminho e Supla usando do show para (re)lançar “Japa Girl”.

(O que não é mau em si, claro: Casa dos Artistas é a maior maravilha da televisão brasileira desde o Miu & Mao no Globo Cor Especial, só para esclarecer).

Mas o fato é que mesmo quando o Big Brother Brasil estreou, em janeiro de 2002, ainda entendíamos o formato como um misto de experimento antropológico e voyeurismo popular. Ainda usávamos como referência o caótico Biosphere 2, que nos anos 1980 isolou cientistas no deserto do Arizona para recriar um ecossistema polinizado dentro de um domo gigantesco. Ou o igualmente chocante Human Zoo, do canal Discovery, no qual as regras inspiravam o surgimento de vários déspotas entre os competidores.

Até quando podemos suportar o isolamento? Até quando podemos desempenhar diante das câmeras? A partir de que ponto baixamos a guarda e vivemos o que realmente somos? Todas essas discussões foram para o ralo logo na primeira temporada do BBB, com Kleber Bambam chorando por uma vassoura que apelidou de “Maria Eugênia”— exatamente como Tom Hanks fez pela bola Wilson em Náufrago, lançado no ano anterior. Bambam venceu a competição.

A partir daí ficou claro “o que o público quer ver” e surgiram as fórmulas: arrume um par, surte um pouquinho, não surte muito, vá para o edredon, mostre a bunda, mostre o torso, diga que “eu estou aqui para ser eu mesmo e não para jogar” etc. Em suma, o reality show virou um show de mentira. Um bando de amadores fazendo teleteatro em horário nobre, sob uma das cargas de patrocínio mais milionárias da televisão brasileira.

(E isso vale para qualquer reality show, claro, com a pequena diferença de que em casos como o de A Fazenda não são amadores, mas profissionais desempenhando em horário nobre)

Pensando bem, todo o raciocínio do Big Brother me parece de uma crueldade além do aceitável. 
 Pessoas sem talento ou inclinação artística alguma ocupam o horário nobre da televisão brasileira por dois meses exibindo sua(s) intimidade(s) na esperança de levar um prêmio de 1,5 milhão de reais. Só de patrocínio (ou seja, sem contar os intervalos comerciais e as ações de mershandising), o projeto rende à Globo mais de 140 milhões. Bacana, né?

Na verdade, o melhor reality-show que jamais será produzido seria acompanhar os seis meses seguintes na vida do quarto colocado do BBB. O infeliz que não ganhou nada e ainda assim perdeu o emprego por abandono do trabalho, fez dívida para contratar empresário, assessor e personal stylist e teve de percorrer todo o périplo de programas populares da Globo sem receber um tostão. Se for homem, então, acresce a tragédia de não conseguir sequer vender suas partes para a Sexy.

Mas eis que um jovem chamado Joakin Kleven, diretor norueguês de 22 anos, ofereceu à APTV, o braço televisivo do tradicionalíssimo jornal Aftenposten, um reality show chamado Sweatshop: Deadly Fashion. “Sweatshop” é a palavra em inglês para as oficinas (“workshops”) onde trabalhadores, geralmente ilegais, suam (“sweat”) durante longos expedientes sob condições sub-humanas, geralmente fabricando roupas.

Penso ser relevante a menção ao fato de que Kleven é gay e dedicou boa parte de sua (curta) experiência profissional a documentários e vídeos engajados. No ano passado, até se arvorou a gravar um single como cantor, um euro-house-R&B pavoroso chamado “Scream it out”, que definiu como “uma plataforma para as pessoas não julgarem o amor baseadas em gênero”. Enfim.

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O programa norueguês Sweatshop (foto: reprodução)

Você deve ter lido sobre Sweatshop em algum lugar nos últimos dias. O formato do programa Ã© 90% de sua genialidade: Kleven convocou três jovens blogueiros de moda (Frida Ottensen, Anniken Jorgensen e Ludvig Hambro) para que viajassem até o lugar onde boa parte de suas lindas e caras roupas são produzidas. Blogueiros de moda, você sabe, em sua maioria são pessoas que recebem roupas e produtos de graça para produzir algo que lembra vagamente o jornalismo, mas que, no fundo, é propaganda disfarçada. E que produzem conteúdo patrocinado pelas marcas que lhes rende mais do que qualquer redação cogitaria lhes pagar. Frida, Anniken e Hambro foram enviados ao Camboja.

Show de realidade é pouco. Além de propor uma fotografia inclemente das condições de trabalho das “sweatshops” patrocinadas pelas grandes marcas, a presença dos blogueiros – jovens, belos e alienados – funciona como um elo dolorido com nossa própria alienação.  O horror de Anniken diante de uma cambojana que está há 14 anos executando a mesma função mecânica é impressionante. Hambro ficou tão impactado com a luta dos trabalhadores por um salário mínimo de 160 dólares por mês que tatuou o valor em sua perna. Os cinco episódios estão disponíveis online, com legendas em inglês.

No Brasil, programas pretensamente engajados caem rapidamente no truque sujo da exploração da miséria humana. Sweatshop não só consegue driblar esse perigo exibindo os ricos e bem nascidos como parte do problema, não como a solução assistencialista. E gerou debate em toda a mídia de moda do mundo, e chegou até ao parlamento, onde leis mais rígidas começaram a ser debatidas desde o final de 2014.

Enquanto algo parecido com isso não é nem cogitado por aqui, só nos resta assistir aos shows de realidade ensaiada.

FONTE : R7

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